Arquivo da tag: vivienne

Notas não tão curtas sobre uma peça ruim (ou algo sobre Gerald Thomas)

Homenagem e crítica a Gerald Thomas, Peça Ruim, nova montagem da Cia de BifeSeco, é uma compilação de referências sobre o trabalho do controverso encenador e uma sátira do fazer teatral. Só não é uma ótima peça por não se levar tão a sério como poderia.

Sávio Malheiros, Má Ribeiro, Patrícia Cipriano e Jeff Bastos em Peça Ruim, de Dimis Jean Sores, em cartaz no Espaço Cênico. Foto: Marco Novack.

Eu só assisti a uma peça de Gerald Thomas: Gargólios, a mais recente dele e a primeira que ele trouxe ao Brasil depois de abandonar os bet’s por aqui, em 2009, e se dedicar a sua London Dry Opera, a versão inglesa da sua Companhia de Ópera Seca – comandada, agora, por Caetano Vilela. Não tenho uma opinião formada sobre a peça, se era ela boa ou ruim, se gostei ou não. Mas a assisti e isso foi importante. Ver, diante dos olhos, algo assinado por aquele que, nas décadas de 1980 e 1990, foi tido como um dos principais nomes do teatro mundial foi uma experiência, para mim, muito grata.

Independentemente da minha opinião, Gargólios tinha uma configuração interessante. Um “one man show”, o próprio Gerald Thomas, assumia o palco com um baixo na mão e introduzia o espetáculo que trazia um mundo apocalíptico com super-heróis destituídos de seus poderes, uma leitura algo turva, algo angustiada dos fatos que se seguiram aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Do palco, Gerald acompanhava e dirigia seus atores com o baixo na mão, dando as notas para a encenação – um certo menestrel fazendo as vezes de um deus coadjuvante, porém onipresente, em um mundo que não é o mundo, mas uma janela para algum recanto trágico, escondido, alheio a ele, no qual as entrelinhas deixam de ser uma simples sugestão para produzirem o fato em si.

Má Ribeiro como Gerald Thomas. Foto: Marco Novack.

A primeira vez que vi uma peça de Gerald Thomas foi, também, a primeira vez que me vi diante do homem. De certa maneira, eu o vi uma segunda vez, desta vem em Peça Ruim, o novo trabalho de Dimis Jean Sores e a sua Cia de BifeSeco que segue em cartaz até domingo, dia 18, no Espaço Cênico. Sim, na pele do controverso encenador, a atriz Mariana Ribeiro é o próprio Gerald Thomas. Ou melhor, uma versão sua, mas uma versão possível, crível e realista – um feito extraordinário que se deve, em grande parte, pela preparação e pelo acabamento que a atriz dá ao personagem, na atuação mais consistente da peça.

Assim como em Gargólios, Gerald, em Peça Ruim, também aparece com um baixo na mão e dita a encenação com suas notas.  Mas o que se vê não é uma peça, mas um ensaio comprometido por divergências entre uma atriz clássica, Irina Arkadina, interpretada por Luiz Bertazzo, e as propostas surreais do diretor que não se faz entender e exige dos seus atores uma entrega quase cega a suas concepções estéticas.

É a partir do conflito que se instaura entre encenador e Irina, uma versão tresloucada da consagrada atriz de A Gaivota, de Tchekhov, que se dá o andamento de Peça Ruim. Até que ele se estabeleça, e depois dele, o espetáculo acontece como recortes de diversas peças de Gerald, como Nowhere Man, Terra em Trânsito, The Flash and Crash Days, dentre outras que podem ser conferidas no videolog do encenador.

Luiz Bertazzo em cena como Irina, a atriz clássica que entra em conflito com Gerald Thomas e instaura a tensão de Peça Ruim. Foto: Marco Novack.

Não só recortes temáticos ou textuais, que se diga. A segunda peça da BifeSeco (a primeira foi Vivienne) coloca personagens, atores que trabalharam com Gerald, cenários e questões importantes para o encenador em cena, na qual tudo o que leva a assinatura do diretor – e ele mesmo – se torna referência para a criação de Peça Ruim, que nasce com o propósito de ser… bem, uma peça ruim. Logicamente que não o é. Pelo contrário. Mas, é preciso que se diga, ela só não é uma ótima peça por não se levar a sério como poderia.

Tudo nela caminha bem, da entrada do público – que precisa pegar a sua cadeira na entrada e colocá-la em qualquer local do cenário movediço criado, no local de encenação do Espaço Cênico, com barro – até aquele que seria o fim do primeiro ato, seguido por um possível intervalo que recebe a intervenção de Daniela Thomas, cenógrafa e cineasta que foi casada com Gerald e é representada, na peça, como Lucky, de Esperando Godot, de Samuel Beckett (um momento inspirado do espetáculo, com atuação excelente de Patrícia Cipriano) – Gerald, aliás, travou relações com Beckett, talvez sua principal referência e maior ídolo.

O segundo ato, no entanto decepciona. Se no primeiro o humor é usado como uma forma de encarar a visão por vezes tida como hermética de Gerald da arte ou o seu teatro “desconstruído” – suas referências e preferências colocadas em cheque pela presença de uma atriz clássica –, no segundo, texto e elenco descambam em uma espécie de patifaria algo indigesta que inclui a aparição de um estagiário de demônio (Diogo Zavadzki) e a ressurreição de um crítico de arte (Rafael de Lari, retornando ao mesmo papel que teve em Vivienne, mas na sua versão zumbi) para ajudar Gerald, o personagem, a construir, na véspera da estreia, um espetáculo que agrade os críticos (ou melhor, os “afete positivamente”) e o público.

Jeff Bastos e Sávio Malheiros, respectivamente como Domingos e Luis Damasceno, atores constantes no teatro de Gerald Thomas e os personagens mais carismáticos de Peça Ruim. Foto:Marco Novack.

Parece que falta uma mão que controle a algazarra que se estabelece em cena. Parte do ritmo da peça decai enquanto o exagero nas atuações aumenta, comprometendo o texto que se perde em meio a brincadeiras que, é verdade, arrancam gargalhadas, mas o empobrecem. Comprometem, por fim, a atuação de seus atores, uma das questões centrais da peça e que, até então, estavam fenomenais – Sávio Malheiros, como Luis Damasceno, o ator fetiche de Gerald; Jeff Bastos, como Domingos, outro ator querido ao diretor; Thiago Inácio, como o Ganso de Terra em Trânsito; além de Bertazzo, que roubava a cena como Irina.

Quem se salva neste caos em que até Stanislavski é exorcizado é Má Ribeiro, ou Gerald. Talvez por qualidades da atriz ou talvez por um propósito genuíno de Dimis Sores, o diretor. Em meio ao que é caótico, salvam-se os mais fortes. É uma imagem possível de Gerald Thomas, que sempre teve sua obra criticada (por vezes, duramente criticada), mas sempre se manteve produzindo e, até hoje, é uma referência.

Embora não se leve a sério, Peça Ruim não deixa de ser um programa interessante, divertido, e feito por gente talentosa que merece ser visto. Sua ousadia revela traços de um bom teatro que germina em um grupo ainda novo, mas com futuro.

PEÇA RUIM

Espaço Cênico

R. Paulo Graeser Sobrinho, 305 – São Francisco

Última apresentações: quinta (15), sexta (16), sábado (17) e domingo (18),  sempre às 20h

Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia-entrada).

1 comentário

Arquivado em cenacuritibana, crítica

Vivienne é teatro falando do próprio teatro*

Peça da mostra Coletivo de Pequenos Conteúdos surpreende com montagem debochada e inteligente

Sávio Malheiros e Patrícia Cipriano em cena de Vivienne, peça divertida que satiriza a construção do teatro contemporâneo. Foto: Rubens Nemitz Jr./Gazeta do Povo.

Vivienne é uma escritora em crise criativa. Depois do sucesso alcançado aos 12 anos com a publicação de um romance sobre um menino judeu escondido sob o assoalho, ela nunca mais conseguiu repetir o seu feito infantil. Agora, perto dos 30 anos, com outras preocupações na cabeça, dentre elas a possibilidade de um AVC, ela quer deixar uma marca, mas não tem ideia, apenas algumas frases soltas sobre o amor.

Encontramos uma Vivienne alucinada quando entramos no TUC – Teatro Universitário de Curitiba, onde a peça que leva o nome da personagem está sendo exibida até sábado. Uma seleta plateia é convidada a assistir ao espetáculo em cadeiras espalhadas pelo palco, o que a torna participante e cúmplice dos tormentos da escritora que, desesperadamente, procura algo inédito e bom para escrever, mas não consegue, nem com a ajuda dos amigos que se aglomeram no seu apartamento.

Aliás, é normal que amigos sejam condescendentes quando colocados no papel de críticos. Há laços mais importantes que precisam ser mantidos e é por isso que a crítica, seja ela positiva ou negativa, dá lugar à simples bajulação. É preciso que um escritor célebre, que surge na peça na forma de um assado para ser devorado por comensais sedentos de arte e inspiração, mostre a Vivienne o caminho para o seu sucesso. É a partir daí que “Vivienne”, não mais a personagem, mas a peça, envereda sobre o tema que quer explorar: o teatro contemporâneo.

Satírico, o espetáculo faz rir – e muito –dos pressupostos artísticos que ditam a construção do teatro atual: pegue um fato cotidiano – a crise criativa, por exemplo – e o envolva em meio ao caos de ideias, sentimentos e personagens, tendo como mote a metalinguagem – o teatro falando do próprio teatro. Junte um pouco de filosofia e algo de mistério – aquilo que o público não vai reconhecer de imediato – ao texto e o entregue a um diretor consagrado, que possa desconstrui-lo de acordo com a sua própria dramaturgia. E deixe, por fim, que o crítico, o grande vilão de Vivienne, a peça, desenvolva as teorias que, no fim das contas, estão fadadas à morte.

É uma maneira de ver as coisas e “Vivienne” acerta justamente por não se levar a sério. Despretensiosa, ela se torna um jogo divertido e cheio de qualidades: o cenário caótico, o texto rápido e irônico, e um elenco que, embora desigual, torna o espetáculo agradável. O destaque vai para Patrícia Cipriano, atriz que dá vida à protagonista, e sua atuação algo neurótica e exagerada, mas delicada em certo sentido, que causa empatia e faz rir em muitos momentos.

Desenvolvida por um grupo de atores como trabalho de conclusão do curso de artes cênicas daFaculdade de Artes do Paraná, a montagem surpreende em meio à produção de grupos iniciantes. Isso não significa que não haja tropeços. Na tentativa de caracterizar tudo o que sinalizam como elementos deste teatro contemporâneo, algumas situações não se encaixam na narrativa e são lançadas na peça apenas para arrancar gargalhadas da plateia – o que funciona, é verdade, mas que também dá provas de inconsistência.

Personagens deslocados e atuações afetadas também minimizam o sabor agradável da peça, que muitas vezes peca pelo exagero. Logicamente, ele é proposital, mas parece diminuir o impacto das questões que, mesmo em meio ao absurdo e ao cômico, são importantes para o jovem grupo de atores – afinal, são eles que colocam essas questões em cena.

Problemas à parte, “Vivienne” é uma grata surpresa. Leve, irreverente e debochada, a peça merece ser vista, se não pelo tema que propõe, pelo menos para se ter boas risadas.

* Texto publicado originalmente em 05/04/2012 na página do Festival de Teatro de Curitiba da Gazeta do Povo Online. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/festivaldecuritiba/conteudo.phtml?tl=1&id=1241454&tit=Vivienne-e-teatro-falando-do-proprio-teatro.

2 Comentários

Arquivado em crítica