Eu confesso: não foi fácil escrever sobre Circo Negro, a peça da CiaSenhas de Teatro que permanece em cartaz até domingo, dia 30, no Espaço da Cia. dos Palhaços (R. Amintas de Barros, 307 – Centro). Há algumas razões para esta dificuldade. A primeira delas é a de se desfazer do arrebatamento inicial, que se estabelece com o início da peça e perdura – por um longo período – depois do seu encerramento. Sim, é pra se entusiasmar e, particularmente, fiquei feliz não só com o espetáculo, mas também o momento a que chegou a companhia.
Tal arrebatamento, quando impregnado por esta tal felicidade, não representa um bom termômetro para a crítica – ou resenha crítica, ou análise, ou pitacos, porque não sei precisar qual a matéria de um texto como este que coloco aqui –, uma vez que ela exige o tal distanciamento que permite avaliar a coisa pela coisa em si – e não a coisa a partir de como eu a vejo enfim. O problema é que, não bastasse um arrebatamento, eu precisei assistir à peça uma segunda vez, o que prolongou o sentimento inicial e me afastou do distanciamento pretendido. É por isso que, se fosse preciso dizer algo sobre ela agora, de pronto e sem amarras, confiando apenas no entusiasmo, diria: “É linda! Corra pra ver”. Simples assim. Mas mesmo me forçando a um distanciamento (necessário), não há como evitar o imperativo. Portanto, corra! E corra mesmo porque este é o último fim de semana.
Assumir esta indicativa é outra razão de dificuldade para me colocar em relação à obra. Significa que eu a indico para o público, o que é verdade, mas não sei se todos os públicos veriam na peça a graça que eu vi – embora seja difícil não gostar do que se vê no pequeno espaço da Cia. dos Palhaços.
Filosofias (mequetrefes, que se diga) à parte, vale justificar por que Circo Negro causa tanto entusiasmo – e por que merece ser vista. A primeira razão está no momento ao qual chegou a CiaSenhas, que mencionei no começo do texto. Eu não acompanhei de perto o trabalho do grupo que existe há mais de uma década até o fim do semestre passado, quando a companhia recapitulou três de seus espetáculos mais recentes (Homem Piano, Delicadas Embalagens e Concerto para Rameirinhas) em uma pequena mostra de repertório, algo que poderia existir mais se não fossem os entraves todos (que quem de arte vive sabe quais são).
Consegui assistir aos três e fiquei impressionado. Parte disso se deve ao fato de as três peças buscarem, no olhar para o público, uma repercussão que se dá em cena, entre os atores. Outro fato que me marcou foi a consistência da dramaturgia desenvolvida pela companhia – uma dramaturgia que se aprimorava e se sofisticava a cada uma das peças.
E, então, depois da recapitulação, surge Circo Negro, uma adaptação do texto do atualmente celebrado dramaturgo argentino Daniel Veronese. Processos de adaptação à parte, o texto de Veronese, originalmente concebido para bonecos, foi transposto para o palco com quatro atores, levando em conta questões importantes para a companhia, segundo Luiz Bertazzo, um dos atores da peça.
Mais do que isso: o texto é usado como meio para a expressão de outras questões que, hoje (e diferentemente das três peças que o grupo recapitulou), com Circo Negro, parecem incorporadas à companhia: a ideia de realismo (importante antes) que se dissolve em uma estrutura nada realista, o gesto imbuído de significação e a emoção que surge independente da narrativa. Três questões apreendidas a partir do texto de Veronese e desenvolvidas a partir do olhar para o público, da percepção do expectador, um elemento que dita a razão de ser da cena, do espetáculo como um todo – pelo menos, é a percepção que tenho, e que fica evidente já no início de Circo Negro.
Aliás, é já no início do espetáculo que se percebe que ele é fruto da maturidade de um grupo que, com Circo Negro, busca inovar a partir de um desafio formal e estético ao qual ele mesmo se coloca. Parte deste desafio está no diálogo que procura estabelecer com um texto que não é de autoria própria (no caso, da diretora Sueli Araújo, que também assina a direção de Circo Negro) e, mais, que pertence a um dos mais importantes dramaturgos latino-americanos da atualidade. Outra parte está na concepção dramatúrgica nada fabular (um salto em comparação aos outros espetáculos) que coloca este texto – e as questões da companhia – em cena.
É aí que a coisa pega – e esta talvez seja a principal razão do meu arrebatamento. Nada do que se pretende com a peça faria sentido se ela não tivesse calcada na atuação de seus atores – ainda mais quando a peça tem como ponto central a representação. E mais, se não fosse o grupo tão coeso. Chama a atenção o fato de tal unidade ser obtida mesmo quando há dois atores novos em cena: Ciliane Vendruscolo e Rafael di Lari, que se juntaram a Greice Barros, Bertazzo e à companhia para a o espetáculo.
Mas, apesar da coesão e afinação do elenco, Circo Negro não só evidencia, como confirma o talento de Luiz Bertazzo, um dos mais evidentes na atual cena curitibana. É dele os melhores momentos da peça, como quando se transforma em leão ou quando descreve a sintomatologia de sua própria morte no palco.
No fim das contas (e até porque o texto já se faz longo), Circo Negro não é um espetáculo para ser entendido. “É pra ver o circo acontecendo”, diz Bertazzo, com quem falei na tentativa de saber mais sobre a peça. De fato, é para ser visto, antes de tudo. Contemplado, que seja, e sentido, do início ao fim. E, fazendo eco ao diálogo relatado por Luciana Romagnoli no início do seu texto sobre a peça (leia aqui), relevante para cruzar as fronteiras da cidade e ser vista por outros olhares.
CIRCO NEGRO
Últimas apresentações: sexta (28) e sábado (29), às 20h; domingo (30), às 18h e às 20h.
Local: Espaço Cultural Cia. dos Palhaços (R. Amintas de Barros,307 – Centro).
Ingressos: R$ 10 e R$ 5 (meia entrada)